Está em curso, é imparável e promete transformar o modo como vivemos, o que consumimos, como trabalhamos e até como aprendemos. No campeonato da 4.ª Revolução Industrial, Portugal está a apanhar o barco para a linha da frente. E as mudanças não se limitam às quatro paredes da fábrica tradicional
“A indústria 4.0 é um desassossego”. A expressão é de Luís Abrantes, CEO da Movecho, empresa luso-suíça de design de produto sediada em Nelas, e foi deixada há alguns meses numa iniciativa da COTEC Portugal. Não só a frase não perdeu actualidade, como sintetiza a onda de transformações que está a percorrer, em 360 graus, todas as estruturas produtivas da nova indústria. Mudanças que convocam todos: empregadores, colaboradores, fornecedores, uma inteira cadeia de valor até chegar ao consumidor.
No centro desta 4.ª Revolução Industrial, uma das maiores a que a humanidade assistiu na era moderna, está a digitalização, o casamento entre os mundos cibernético e físico, orientado para o consumidor, que potencia a personalização, melhora a eficiência e a produtividade e reduz o desperdício. E que se veio insinuando nos últimos anos, herdando o melhor da 3.ª Revolução – trazida nos anos 70 pela chegada do computador e da automatização –, a que se somaram funcionalidades de autonomia alimentadas por dados e machine learning (adaptação e evolução do computador perante exposição contínua a nova informação. O cunho de Indústria 4.0, sugerido pelo especialista alemão em inteligência artificial Wolfgang Wahlster na feira de Hannover em 2011, baseia este novo conceito na comunicação entre máquinas via internet, no processamento de enormes quantidades de dados e na sua disponibilização aos operadores, proporcionando apoio a algumas tarefas desempenhadas por humanos e mesmo a sua substituição total numa série de outras, intervenção que neste caso podia incluir a tomada de decisões com base em dados recolhidos e interpretados.
Segundo a consultora McKinsey, o elevado volume de dados gerados pelas máquinas (e registados através de sensorização) é uma das circunstâncias que mais alimentam esta revolução. Com ele se conjugam o poder computacional e de conectividade e o surgimento de capacidades de analítica e de business-intelligence, que permitem digerir toda esta informação que é gerada e partilhada entre equipamentos. Juntem-se as novas formas de interacção homem-máquina que é possível estabelecer e as melhorias na transferência de instruções digitais para o mundo físico e temos os alicerces de uma verdadeira fábrica do futuro.
RUTURAS TECNOLÓGICAS
Todas estas inovações se materializam, segundo a consultora BCG, em nove rupturas tecnológicas que estão – e prometem continuar – a transformar a produção industrial. Desde logo o big data e a capacidade de análise de grandes quantidades de dados gerados pelos sistemas de apoio à decisão do operador humano, enquanto se concentram na cloud (armazenamento em nuvem, que sendo “cérebro” é um dos “corações” da 4.0) os dados e funcionalidades associados ao funcionamento dos equipamentos.
A internet das coisas, que ao interligar e fazer interagir equipamentos no terreno, permite a monitorização em tempo real, facilitando a manutenção preditiva de equipamentos e alia-se à integração horizontal e vertical dos sistemas, que confere cadeias de valor automatizadas às organizações.
NO LIMITE, AS ORGANIZAÇÕES PODERÃO ADAPTAR-SE EM TEMPO REAL, EM FUNÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DOS DADOS, TORNANDO-SE MAIS “PREDITIVAS”
Do lado da máquina, a robotização autónoma veio permitir a existência de equipamentos com capacidade para funcionarem isolados, mas que interagem entre si e trabalham ao lado dos humanos, aprendendo com eles para conseguirem completar operações complexas e não repetitivas. A emergência do fabrico aditivo (como na impressão 3D) responde a um dos maiores desafios da nova vaga: a maior personalização dos produtos, viabilizando a produção de pequenos lotes e realização de designs mais desafiantes, ao mesmo custo de um produto de massas.
Outras duas aplicações em particular encerram potencialidades de redução de esforço, tempo e dinheiro, especialmente no ambiente industrial: a simulação (reprodução em modelo virtual do mundo físico que permite optimizar e testar equipamentos) e a realidade aumentada (para digitalização de serviços, que é usada para interacção virtual com os equipamentos, e útil tanto no apoio à operação como na formação de equipas de operadores).
E, a envolver todo este sistema nervoso central que suporta a indústria do futuro – e todas as outras inovações que estão por surgir –, está a cibersegurança, para responder ao aumento de necessidade de proteção de sistemas e linhas de fabrico e acesso à gestão de equipamentos.
Com a absorção pela indústria das inovações trazidas pelo cruzamento da tecnologia de ponta e pela internet, é de esperar mudanças de fundo na forma como os produtos são desenhados e desenvolvidos, permitindo novas ofertas e serviços, alterações na cadeia de fornecimento (articulando a smart factory com uma rede de fornecimento ligada e capacidades logísticas) e mudanças na experiência do consumidor.
Uma vez mais, os dados e a sua análise, que neste caso favorecerão o desenho de estratégias de fidelização do consumidor e uma melhor relação com ele ao longo do ciclo de vida do produto. A geração e análise de petabytes de informação e o número de intervenientes que a ela podem ter acesso também permitem integrar informação de várias fontes e melhorar a tomada de decisões de uma forma holística. “E até começar a prevenir em vez de reagir,” dizem Mark Cotteleer e Brenna Sniderman, da Deloitte, a consultora que antevê as transformações referidas no parágrafo anterior. No limite, as organizações poderão ajustar-se e adaptar-se em tempo real, em função da leitura dos dados recolhidos ao minuto, tornando-se mais “responsivas, proactivas e preditivas”.
A integração de tecnologias físicas e digitais também pode levar a criar novas actividades, melhorando operações e o crescimento do negócio, com maior produtividade, redução dos riscos. E com benefícios para os humanos, não só os trabalhadores – alterando o trabalho que fazem e como o fazem, tarefas variadas, complicadas e imprevisíveis, como interagir com as tecnologias, em parceria com tecnologias autónomas – como os clientes (pela maior personalização conseguida), através da automação inteligente e da ligação entre sistemas. A evolução industrial, de sistemas incorporados para uma rede de objectos inteligentes, vai conduzir, segundo Wahlster a sistemas de produção ciberfísicos para personalização massiva.
“Dois carros não voltarão a ser iguais. Serão individualmente moldados à necessidade dos consumidores,” antecipa por exemplo a Bosch. A multinacional alemã acredita que a procura por produção personalizada levará as empresas a adaptarem-se rapidamente às necessidades do mercado, de que esta configuração e personalização de carros é exemplo. Além de exigir maquinaria mais versátil e adaptável, os ciclos de planeamento e alteração serão encurtados e optimizados os fluxos de circulação de componentes no espaço da fábrica, onde as representações virtuais, os robôs autónomos e o treino de equipamentos farão parte do quotidiano das operações.
FÁBRICAS MAIS PEQUENAS E ÁGEIS
“Transferiu-se a produção para países com mão de obra mais barata para reduzir custos, mas o preço do trabalho não se mantém sempre baixo; aumentámos o tamanho das fábricas para aumentar produção, mas isso acrescentou ridigez. Mudámos a localização, o tamanho e a forma como operámos. Mudámos tudo o que pudemos no modelo e atingimos o limite. Falhámos ao reinventar o espaço de fabrico, enquanto a inovação tecnológica se desenvolveu fora da fábrica”. Num Ted Talk, Olivier Scalabre retratava assim a evolução a indústria nas últimas décadas. O diagnóstico tem quatro anos, mas poderia ter sido feito hoje.
DA MESMA FORMA QUE NÃO É INSTANTÂNEA, A REVOLUÇÃO TAMBÉM NÃO SE DEVERÁ AFIRMAR POR IGUAL EM TODOS OS SECTORES
Porém este responsável do Boston Consulting Group (BCG) também antecipava como a 4.ª Revolução Industrial poderá mudar radicalmente a forma como a globalização se processou nos últimos anos. Nas suas palavras, a automatização aumentará em mais de um terço a produtividade industrial, as fábricas serão mais pequenas e ágeis (a flexibilidade será mais importante que o tamanho) e a possibilidade de produção personalizada em escala (multiprodutos, feitos por encomenda) vai trazê-las para mais próximo dos locais de consumo. “Só os países que se transformarem corajosamente vão conseguir reter o crescimento,” avisou. Com estas dinâmicas locais virão benefícios económicos e comerciais de proximidade. Produzir localmente e em pequenas séries também evitará desperdícios, o que terá um impacto positivo no ambiente.
A McKinsey e a Deloitte arrefecem, porém, os ânimos: o ritmo da mudança é rápido e urgente, mas não imediato, até porque nem todas as novas tecnologias estão prontas para serem escaláveis. Haverá, aliás, nos vários anos desta revolução, um período de convivência entre tecnologias actuais e emergentes e o grau de substituição será inferior ao de outras vagas. Os executivos auscultados pela McKinsey estimam que, na actual transformação, 40 a 50% dos actuais equipamentos precisem de ser modernizados ou substituídos, enquanto na transição da primeira para a segunda revolução industrial (vapor para electricidade) esse peso ficou nos 80-90%. É um caminho que se faz caminhando, defende igualmente a Deloitte, que aconselha a que as organizações criem um ecossistema favorável à inovação, empreendam projectos piloto em áreas que possam libertar potencial de crescimento e que persistam e insistam, porque a revolução não se faz de uma vez. Líderes inquiridos pela consultora apontam entre os principais desafios à implementação do 4.0 a falta de visão, a profusão de escolhas tecnológicas e os silos organizacionais e geográficos. Noutro estudo, a quase totalidade dos executivos inquiridos vê como prioridade de topo a transformação digital, mas apenas 14% estão confiantes de que as suas empresas estão prontas a agarrar as mudanças trazidas pela internet das coisas (IoT).
DEPOIS DA DEMONSTRAÇÃO E MOBILIZAÇÃO DA PRIMEIRA FASE, A SEGUNDA ETAPA DO I4.0 EM PORTUGAL PRETENDE SER DE TRANSFORMAÇÃO
Da mesma forma que não chega de um dia para o outro, a revolução também não se deverá afirmar da mesma forma em todos os sectores. Outra consultora, a Roland Berger, distingue mesmo os que vão ser tocados, em três vagas distintas, pela chegada do 4.0 à indústria. Os pioneiros e primeiros a abraçar as mudanças são o sector automóvel e seus fornecedores, bem como a área logística; de seguida, alarga-se ao sector tecnológico médico, engenharia eléctrica, mecânica e industrial e aos sistemas de energia. A terceira vaga abrange as indústrias química e aeroespacial.
Mudanças desta magnitude obrigarão a respostas e a sintonia por parte dos parceiros da máquina – os trabalhadores humanos. Desde logo, espera-se que novos empregos sejam criados e que outros desapareçam.
Um estudo da Oxford Economics estima que só os robots industriais substituam na ordem dos 20 milhões de empregos na próxima década em fábricas de todo o mundo, enquanto a Roland Berger antevê sete milhões de novos empregos só nos sectores dos serviços e TI. E a mão de obra existente terá de ser reciclada de forma massiva. Ainda recentemente a Amazon anunciou o Upskilling 2025, programa que vai investir 700 milhões de dólares nos próximos seis anos para adaptar 100 mil pessoas da sua base laboral a uma economia cada vez mais marcada pela automação e digitalização. E isto apenas nos Estados Unidos, onde a 4.0 é vista como uma evolução digital holística, enquanto na Europa está mais centrada e orientada para a fábrica.
Desenvolvido em parceria com: