Estudo realizado a partir de quatro case studies destaca potenciais benefícios de 60 milhões de euros por ano para o SNS
A onda de transformação digital veio para ficar e impactar todos os setores da sociedade, criando formas de garantir a eficiência, assim como aumentar a segurança dos doentes e dos profissionais
As últimas décadas trouxeram novas formas de combater as condições médicas, aumentando progressivamente a esperança média de vida da população. Uma circunstância que, aliada ao envelhecimento da sociedade, representa um desafio acrescido para sociedades como a portuguesa, em particular para áreas sensíveis como o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Como tirar, então, o melhor partido do investimento feito pelo Estado neste sector com recurso à tecnologia que a i4.0 coloca ao nosso alcance?
Para chegar a uma resposta, a iniciativa “Connected Healthcare”, promovida pela COTEC Portugal e pela indústria, encomendou um estudo à Católica Porto Business School para perceber o impacto que a conectividade, digitalização, automação inteligente e reorganização dos processos clínicos poderão ter nas contas do SNS. Quatro estudos de casos foram o ponto de partida: codificadores únicos no circuito do medicamento em ambiente hospitalar, testado no Hospital de Cascais Dr. José de Almeida; gestão centralizada da capacidade instalada de imagem médica, aplicado com tecnologia da Siemens em Atenas, na Grécia; reestruturação de um laboratório de patologia clínica de hospital, no Hospital de Vila Franca de Xira; e, por fim, a aplicação de uma plataforma para detecção precoce da deterioração do estado clínico dos doentes hospitalizados, testado no Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto.
De forma geral, o «Connected Healthcare» identificou uma série de benefícios associados à utilização destes mecanismos e tecnologias, caso fossem replicados no SNS. Entre os principais, destaque para “a redução de risco clínico, a melhor utilização de recursos disponíveis e o aumento da qualidade do serviço”, que os relatores dizem representar cerca de “60 milhões de euros anuais de benefícios para o setor público”. Este valor, atingido apenas com estes quatro casos de estudo, não significa, alertam os autores, uma redução de despesa no SNS, mas antes um melhor aproveitamento deste valor nos serviços de saúde prestados pelo Estado e uma maior eficiência na utilização dos recursos humanos, nomeadamente médicos e enfermeiros.
Os case studies foram validados para que fosse possível “avaliar o potencial impacto económico-financeiro que a sua implementação generalizada teria no sistema de saúde português.” Os autores do relatório salvaguardam que é “importante salientar que existem sempre limitações neste tipo de exercício de generalização” quando não existem dados concretos disponíveis para análise. Ainda assim, acreditam que os resultados apresentados permitem “uma percepção do efeito líquido que cada caso poderá gerar”.
Tecnologia revolucionária?
Embora a implementação de mais robustos sistemas tecnológicos na gestão hospitalar e de novos meios complementares de diagnóstico e terapêutica seja, em muitos casos, uma inovação, não significa que as ferramentas usadas sejam novidade. Neste estudo foram analisadas soluções de business intelligence (BI) que permitem um melhor apoio à tomada de decisão dos clínicos – na avaliação médica – e dos gestores – na administração de recursos.
Porém, a verdadeira disrupção está na aplicação ao mercado da prestação de serviços de saúde, que vêm beneficiando de avanços tecnológicos utilizados noutros sectores. Ainda assim, e embora não seja focado no documento encomendado pela COTEC, os últimos anos têm sido férteis em novas soluções baseadas em tecnologia para melhorar a qualidade de vida das pessoas, diminuir o risco associado a determinadas doenças ou monitorizar à distância os mais idosos e vulneráveis.
No Brasil, o Hospital Albert Einstein em São Paulo implementou um sistema que permite um primeiro diagnóstico dos pacientes com recurso a algoritmos capazes de detectar condições clínicas pela análise de imagens, alertando os médicos. Por cá, investigadores da Universidade do Minho, Valência e Alicante desenvolveram um sistema baseado em inteligência artificial, o Pharos, que permite acompanhar idosos, alertar para potenciais problemas de saúde e aconselhar exercícios físicos. Há todo um mundo de possibilidades aberto pela aplicação da tecnologia.
Menos custos e menos óbitos
Aumentar a eficácia dos cuidados de saúde e a eficiência dos recursos financeiros, a par com a redução de mortes, foram as grandes conquistas do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto
Recentrar a prestação de serviços no utente é, a par com a digitalização, uma das grandes tendências na saúde, onde a adopção de tecnologia pode ajudar a reduzir o risco clínico em ambiente hospitalar e a usar melhor recursos humanos e financeiros. No ano em que se assinala o 60.º aniversário do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) no Porto, Maria João Campos acredita que “o desafio actual em tecnologias de informação (TI) é saber como preservar e ter acessível aos clínicos a informação que hoje estamos a produzir no digital”. A directora do Centro de Gestão de Informação do CHUSJ explica que a “estratégia de desenvolvimento interno” tem permitido a aplicação de diferentes soluções tecnológicas, como a transição recente de um software com 30 anos para uma segunda versão mais moderna e adequada. “Esta evolução tecnológica permitirá transitar para o digital várias áreas do hospital que estavam até esta data limitadas pela infraestrutura tecnológica”, detalha.
Se 2019 foi o ano da capacitação do CHUSJ, já 2012, quando o hospital introduziu ferramentas de business intelligence (BI) na monitorização dos sistemas de gestão, foi “o início mais disruptivo no caminho para o digital”. Desde aí outras soluções foram integradas, como o HVITAL, principal objecto de estudo do relatório “Connected Healthcare”, desenvolvido pela COTEC Portugal com a Católica Porto Business School.
Esta plataforma digital permite a detecção precoce do risco de deterioração do estado clínico dos pacientes hospitalizados, através do registo de informação e da sua correlação, ajudando médicos e enfermeiros a tomarem decisões. Por exemplo, tendo em conta alterações do estado clínico dos pacientes, o sistema recomenda automaticamente a sua transferência para a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI). “O HVITAL permitiu reduzir a infecção hospitalar pela capacidade de controlo e monitorização que foi desenvolvida, correlacionando diferentes fontes de informação, com o objectivo de antecipar situações de infecção”, explica a responsável. Entre os benefícios registados pela introdução do sistema estão a previsão de 84% nas admissões à UCI, uma redução superior a 6% do número de internamentos urgentes na UCI provenientes da enfermaria ou a previsão de necessidades de transferência para aquela unidade com sete dias de antecedência.
Estes resultados permitem não só aumentar a eficiência do serviço UCI, como preparar de antemão as necessidades futuras. O “Connected Healthcare” realça ainda a possibilidade de previsão de 50% dos óbitos de utentes que não estão na UCI sete dias antes de acontecerem, bem como uma melhor gestão operacional do bloco operatório, maximizando a sua utilização e aumentando o número de cirurgias. Além de uma redução anual de 1,3 a 4,1 milhões de euros em custos no SNS, a implementação do HVITAL permite, segundo os autores do estudo, reduzir o número de óbitos nos internamentos na UCI entre 53 a 106 por ano.
Para Maria João Campos, “a evolução e capacitação tecnológica que o CHUSJ tem vindo a adquirir tem permitido ter uma abordagem estruturada” que permite “gerar valor para o doente e para prestação clínica de cuidados de saúde”.
Seguir o medicamento, garantir a segurança
Os standards GS1 deram um empurrão valioso à transformação digital do Hospital de Cascais Dr. José de Almeida.
A estratégia de digitalização no Hospital de Cascais Dr. José de Almeida está em curso desde 2016, quando a unidade gerida em parceria público-privada atingiu o ponto “de maturidade tecnológica”. Luís Miguel Gouveia explica que o projeto foi centrado no paciente para “melhorar a qualidade, a segurança e a eficiência dos cuidados de saúde a doentes hospitalizados”. Seguindo a filosofia “High-Care” – conciliação da tecnologia com processos clínicos sólidos e a humanização do cuidado, – foram introduzidos sistemas de fast-track (aplicados na triagem de doentes urgentes), de apoio à decisão clínica ou codificadores únicos no circuito do medicamento.
A implementação de standards GS1 no circuito do medicamento permitiu registar informação relevante sobre os fármacos e monitorizar o seu percurso, desde a entrada na farmácia hospitalar até à administração no doente. O objetivo desta ferramenta visada no estudo da iniciativa “Connected Healthcare”, aponta o administrador executivo Luís Miguel Gouveia, passava por “ultrapassar o método tradicional do circuito do medicamento”, permitindo a rastreabilidade total dos artigos utilizados e garantindo os “cinco certos da administração terapêutica” – doente certo, com o medicamento certo, na dose certa, à hora certa e pela via de administração certa.
Este sistema mereceu a atenção dos responsáveis pelo relatório “Connected Healthcare”, que destaca a redução de 28% no tempo médio gasto pela equipa de enfermagem por utente, menos 17% do tempo com medicação e redução de nove horas por cada turno de enfermeiros. Esta eficiência resultaria numa poupança que oscila entre os 9 e 22 milhões de euros anuais, caso fosse aplicada ao SNS (16,1 milhões de euros/ano no cenário médio).
O compromisso do Hospital de Cascais com a tecnologia não se reduz à mera aplicação de soluções. Luís Miguel Gouveia recorda que “foi necessário garantir uma liderança desta transformação digital, coordenada pelo líder do projeto em articulação com o responsável de tecnologias de informação e os clínicos”, com a criação de dois novos cargos na hierarquia hospitalar – o chief medical information officer (CMIO) e chief nursing information officer (CNIO). Estes são responsáveis, em articulação com a equipa de TI, por “garantir que a implementação de tecnologia e o desenvolvimento dos sistemas são realizados com base nas necessidades que os profissionais apontam para um melhor cuidado ao doente”, detalha.
A adoção, no final de 2016, do sistema EMRAM – Electronic Medical Record Adoption Model permitiu avaliar a disseminação tecnológica na unidade de Cascais atribuindo ao hospital uma “certificação de nível seis (em sete), colocando-o numa elite de poucas dezenas de hospitais com a mesma diferenciação” e permitindo à equipa de gestão “definir os próximos passos da sua estratégia” de transformação digital.
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