Relatório do Banco Europeu de Investimento, COTEC Portugal e Oliver Wyman considera essencial que os bancos tenham mecanismos para avaliar o risco de projectos de transformação e de maturidade digital.
Ao longo das últimas décadas, Portugal tem vindo a enfrentar uma série de obstáculos no processo de fortalecimento e consolidação da sua economia, vivendo constantemente em períodos de altos e baixos – nos gráficos económicos, mas também nos balanços financeiros das contas do País. Os diferentes períodos de crise fazem do PIB um indicador tímido e retraído, com consequências que se alastram às limitações de investimento público e à interrupção do crescimento das empresas, dificultando um desempenho positivo em várias frentes. A falta de competitividade, a elevada dependência do crédito bancário e a baixa produtividade são sintomas crónicos da economia e do tecido empresarial portugueses.
No relatório preliminar sobre o desenvolvimento de modelos de financiamento para a digitalização das PME (projecto conjunto da COTEC com o Banco Europeu de Investimento, realizado por uma equipa envolvendo o BEI, a consultora Oliver Wyman e a COTEC Portugal) os relatores alertam precisamente para as dificuldades históricas das empresas nacionais como um dos grandes desafios que o País precisa de endereçar para melhorar a performance económica e aproximar-se dos seus congéneres europeus. “Enquanto se mantêm dificuldades resultantes da crise económica, o recente crescimento económico tem ajudado a inverter estas tendências”, lê-se no documento será que apresentado oficialmente em Setembro.
O retrato pintado ao longo das mais de 100 páginas de análise minuciosa ao plano de financiamento mostra um país dependente, essencialmente, de PME com menos de dez funcionários, “largamente concentradas em sectores com baixa produtividade”, que representam 78% de toda a força laboral, contra 67% na média europeia.
É também nestes sectores tradicionais que a digitalização pode ter maior impacto, ajudando a transformar processos, criar novos produtos, novos mercados e, igualmente importante, mudar o mindset dos gestores. Neste campo, aliás, o Digital Intensity Index, promovido anualmente pela UE, diz que quase 40% das pequenas e médias empresas nacionais têm um índice de intensidade digital considerado muito baixo. Esta falta de aposta na digitalização pode ser, para muitas delas, fatal.
Anand Vengurlekar, especialista em design thinking e consultor para a inovação, foi um dos oradores principais do 16.º COTEC Innovation Summit, que decorreu no início de Julho, em Famalicão, e deixou uma mensagem clara a estas organizações que se mantêm atrás da onda de transformação. “Se não levarem a sério esta ideia de Indústria 4.0 vão ficar para trás”, alertou. “Chamamos-lhe [4.ª] revolução, uma palavra que acho curiosa porque o seu sucesso depende sempre de que lado se está.” Ainda que neste caso não existam dúvidas de que o caminho é o digital.
ESPINHOS NA ROSA DO FINANCIAMENTO
Apesar de uma primeira contextualização aparentemente cinzenta sobre o apoio à transformação digital das empresas, e pese embora as cicatrizes deixadas pela crise, o BEI reconhece que os níveis de investimento têm aumentado nos últimos dois anos e que estão a ser feitos esforços para continuar esse percurso. Além do Governo, “existem também diversos clusters e associações empresariais que desempenham um papel importante na colaboração e integração das PME para promover a digitalização”, lê-se no relatório preliminar.
“APENAS FINANCIAMOS PROJETOS INOVADORES, É UMA OBRIGAÇÃO QUE QUEREMOS RESPEITAR E É UMA REGRA DA UE”
JAIME ANDREZ, PRESIDENTE DA COMISSÃO DIRETIVA DO COMPETE 2020
O instrumento financeiro da União Europeia refere ainda que o crescimento e a consolidação do ecossistema português de startups tem beneficiado de um ambiente potenciado por grandes eventos internacionais, como a Web Summit, mas que ainda não é suficiente para colocar empresas nacionais e europeias lado a lado. “O nível geral de adopção do digital pela economia mantém-se inferior à média europeia”, que se explica por vários entraves – falta de aposta em investigação e desenvolvimento (I&D), falta de qualificação laboral e dificuldades no acesso ao investimento.
Kim Kreilgaard, responsável pela delegação do BEI em Lisboa, explica que “no que diz respeito ao fornecimento de soluções de financiamento, já existe uma gama bem desenvolvida de instrumentos disponíveis” em Portugal e que o país se tem vindo a aproximar da média europeia. Porém, Kreilgaard realça que o tecido empresarial português continua a ter “maior dificuldade do que os seus congéneres europeus no financiamento de projectos transformadores e de risco, onde as garantias têm um papel relevante”. Significa isto que não só a consciencialização e a qualificação são obstáculos à digitalização, como o acesso das PME ao financiamento torna-se mais difícil porque “os projectos da Indústria 4.0 envolvem, geralmente, uma componente intangível significativa”, que torna mais complexa a análise de risco pelos bancos. A consequência é, inevitavelmente, a menor disponibilidade de financiamento.
Precisamente para combater este desafio, o COMPETE 2020, co-financiador do programa Indústria 4.0, criou um novo instrumento de apoio à digitalização, em parceria com o IAPMEI, com garantias da SPGM, a entidade coordenadora da garantia mútua, reforçadas. “Tivemos a oportunidade de colocar no mercado um novo instrumento que combina subsídios e instrumentos financeiros, colocando os bancos e as agências públicas a trabalhar juntos”, explicou Jaime Andrez, responsável por aquele programa, que justifica dizendo que “os bancos têm capacidade para avaliar os riscos e as agências públicas têm as capacidades técnicas para avaliar o projecto”. Durante o painel “Test before invest: overcoming the death valley”, no COTEC Innovation Summit, Andrez detalhou que este processo fica, assim, dependente de duas decisões, dos bancos e das agências públicas, de forma a garantir que os objectivos da política pública são apoiados pelo sector financeiro.
Do lado da SPGM, representada no debate pela presidente Beatriz Freitas, a entidade afirma compreender as dificuldades das PME no que diz respeito às garantias físicas para projetos que, muitas vezes, não as têm. Garante, por isso, estar a rever a “linha de crédito para a Indústria 4.0 e a tentar aumentar a garantia para que os bancos possam dar mais empréstimos às pequenas empresas”. No entanto, refere, a SPGM também assume dificuldades na análise do risco de determinados projetos digitais, levando a instituição a criar novas formas de classificação para estas iniciativas em parceria com a COTEC e outras entidades especialistas na área.
“SABEMOS QUE APENAS UMA EM CADA QUATRO EMPRESAS PORTUGUESAS ESTÁ TECNOLOGICAMENTE PREPARADA PARA TIRAR PARTIDO DA I4.0 E DESTA TRANSIÇÃO”
ISABEL FURTADO, PRESIDENTE DA DIRECÇÃO DA COTEC PORTUGAL
SISTEMA DE FINANCIAMENTO DEMASIADO “COMPLEXO”
Uma das críticas repetidamente deixadas a Portugal prende-se com o seu nível de burocratização de processos e mecanismos. Desta vez, a chamada de atenção não vem das empresas, mas do BEI e da Oliver Wyman que escrevem no relatório preliminar que existem demasiados programas de financiamento e entidades gestoras, o que leva a uma “subutilização” destes instrumentos. “Existem pelo menos 33 programas activos, geridos por 23 entidades, que directa ou indirectamente visam os objectivos da Indústria 4.0”, escrevem os relatores, explicando que “isso aumenta a dificuldade de implantar recursos de maneira eficiente”.
Confrontado com esta análise, Jaime Andrez discorda “do estudo quando diz que temos um sistema complexo” e justifica. “Tivemos 30 mil candidaturas e 13 mil projectos aprovados nos últimos quatro anos e com este instrumento novo recebemos 1200 candidaturas, o que faz parecer que o sistema não é assim tão complexo, pelo menos não ao ponto de impedir que as empresas se candidatem”, defende. Do ponto de vista das garantias pedidas às PME para projectos de digitalização, o responsável acredita não existir uma assimetria tão marcada entre pequenas e grandes empresas. “As startups representam cerca de 20% dos incentivos, 24% para pequenas empresas e cerca de 26% para empresas médias, o que deixa 20% de incentivos para as grandes empresas”, refere.
PREPARAR O FUTURO
Apesar das dificuldades, Portugal parte agora em vantagem em direcção a um futuro pintado por uma economia mais digital, competitiva e inovadora. Prova disso são os resultados do último European Innovation Scoreboard (EIS 2019), ranking em que o país conquistou a 13.ª posição e o título de líder do grupo de nações consideradas “moderadamente inovadoras”. Esta é uma subida de cinco lugares, em relação ao EIS 2016, e pode ser o último passo antes da passagem de Portugal para o grupo de países tidos como “fortemente inovadores”.
“ESTAMOS A REVER A NOSSA LINHA DE CRÉDITO PARA A INDÚSTRIA 4.0 E A TENTAR AUMENTAR A GARANTIA PARA QUE OS BANCOS POSSAM DAR MAIS EMPRÉSTIMOS ÀS PEQUENAS EMPRESAS”
BEATRIZ FREITAS, PRESIDENTE DA SPGM
Para Isabel Furtado, este é um “sinal positivo”, embora a presidente da COTEC tenha feito questão de assinalar que a inovação é “a única solução para as empresas reforçarem a sua competitividade”, mas também “a menos bem dominada e onde menos investimos”. A responsável pela associação refere ainda que menos de 5% das exportadoras investe em I&D, mas que esta minoria é responsável por 12% do total de volume de negócios das empresas e por 31% das exportações nacionais. “Em média, as empresas portuguesas investem três vezes menos em novo conhecimento comparadas com as suas congéneres europeias mais competitivas”, remata.
O relatório preliminar conjunto do Banco Europeu de Investimento e COTEC, com a Oliver Wyman refere a aposta em I&D como um dos desafios a superar, ainda que deixe um conjunto de outras recomendações para o tecido empresarial português, mas também para os organismos públicos. Uma das principais sugestões prende-se com a melhoria da utilização de instrumentos de financiamento para a digitalização, nomeadamente através da consolidação de toda a informação e dos critérios de elegibilidade num só portal online para “incentivar a sua utilização” pelos empresários. Além disso, o documento aponta a criação de um sistema de classificação digital independente e objectivo que sinalize “a maturidade digital das empresas e dos seus projectos”, tornando o financiamento (ou as condições favoráveis) “contingente num aumento da maturidade digital” com a adopção do projecto.
À semelhança da posição aflorada por Jaime Andrez durante a cimeira, também o relatório defende a promoção do crédito para projectos mais transformadores, criando novas formas de partilha de risco entre público e privado. Por outro lado, o fortalecimento dos clusters na II Fase do Indústria 4.0 e da colaboração entre vários sectores mais tradicionais, assim como um aumento da consciencialização das vantagens da i4.0 para as empresas, são recomendações deixadas pelas entidades redatoras.
Nesta segunda etapa do programa para a 4.ª Revolução Industrial, o objectivo passa por “chegar a 20 mil empresas, requalificar 200 mil pessoas e financiar 350 projectos transformadores”, conforme sublinhou Pedro Siza Vieira durante a sua intervenção na cimeira dedicada à inovação. O ministro Adjunto e da Economia terminou reforçando “que a continuação deste esforço implica que sejamos capazes de nos adaptar a um contexto de mercado económico em que a digitalização e a automação vão ser cada vez mais decisivas” para garantir o crescimento da economia nacional.
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