O acesso ao capital humano e ao talento é, para a presidente da Direcção da COTEC Portugal, o verdadeiro recurso distintivo da 4.ª Revolução Industrial e condição para reduzir assimetrias e lacunas de competitividade.
Que balanço faz dos primeiros dois anos do Programa Indústria 4.0? Se tivesse de destacar três marcos no percurso do programa até agora, quais seriam?
O Programa Indústria 4.0, pilar central da Estratégia de Digitalização da Indústria Portuguesa, é a primeira grande iniciativa pública dirigida às empresas, com especial enfoque às industriais, de apoio à transição para a 4.ª Revolução Industrial. O balanço desta primeira fase é muito positivo.
Com execução quase a 100% das 64 medidas, o Programa capturou a atenção das empresas, do sistema científico e tecnológico e da comunidade educativa para um novo paradigma tecnológico, que vai exigir um enorme esforço de requalificação das pessoas, incorporação tecnológica e transformação organizacional. Mobilizou consultores, integradores de sistemas e fornecedores de tecnologia e mesmo o sector financeiro para uma abordagem estruturada a uma grande oportunidade de mercado que representa a transição para uma economia mais integrada, colaborativa e sustentável. Finalmente, a execução e resultados do Programa criaram um claro e amplo consenso político e institucional que possibilitou assumir objectivos estratégicos para a próxima década em termos da ambição da liderança na economia digital, deixando clara a urgência da mudança e a prioridade de medidas de apoio às empresas nos investimentos em formação e requalificação profissional, nas actividades de inovação e na exploração das possibilidades e aplicação prática das tecnologias 4.0.
A concepção e implementação operacional do Programa, assente numa parceria entre privado e o Estado, a forte presença no terreno, o modelo de acompanhamento e governo do Programa, do qual se destacou o “Comité Estratégico”, foram factores que levaram a Comissão Europeia a considerar esta uma boa prática no domínio da política pública.
Destacamos como primeiro marco, a parceria inédita para implementação de uma política pública desta natureza, materializada na assinatura de um Protocolo para quatro anos entre o Ministério da Economia e a COTEC. Ficamos assim mandatados para a coordenação operacional e monitorização do Programa, e que foi antecedido por um extenso processo de desenho e concepção que envolveu centenas de empresas e entidades públicas e privadas. Como segundo marco, a cultura de colaboração das iniciativas do Programa, entre empresas, instituições públicas e sistema científico e tecnológico.
Por último, a capacidade de mobilização e demonstração do Programa, com os Open Shop Floor, os grupos de trabalho sectoriais e transversais e as reuniões do Comité Estratégico, que mobilizaram centenas de profissionais, abriram as portas de empresas líderes de diferentes sectores de actividade e permitiram a adaptação constante da Estratégia e das medidas do Programa. Esta troca de experiências, a compreensão e o conhecimento que hoje detemos sobre a situação e necessidades da economia portuguesa, foi determinante para a preparação e lançamento da segunda fase, já em curso.
Quais são as vantagens de ter a COTEC Portugal a liderar este processo e não, por exemplo, uma instituição pública? Como é que tem funcionado a articulação com os poderes públicos e com os restantes parceiros?
A principal vantagem de uma rede empresarial como a COTEC a liderar a coordenação operacional do Programa é a proximidade e conhecimento profundo da realidade empresarial e necessidades do tecido produtivo, com especial destaque para as PME e as suas especificidades.
O contacto directo e em permanência com a nossa rede multissectorial de 340 empresas e instituições é determinante para identificar e antecipar tendências que influenciarão as condições de mercado, criar novas ligações e espaços colaborativos e, acima de tudo, disseminar boas práticas.
Finalmente, a posição independente da COTEC, permite manter uma relação de proximidade com os decisores políticos sem perder a autonomia e assim identificar e propor, de forma atempada, melhorias ao contexto de políticas de apoio à inovação empresarial e à competitividade.
Que contributos é que o Estado e os organismos públicos já estão a dar para a execução desta estratégia? Considera necessário um maior envolvimento?
Ao longo destes dois anos o Estado e os seus organismos têm dedicado recursos relevantes ao apoio aos investimentos privados na inovação e especialmente na modernização tecnológica na esfera do 4.0.
É crucial dar continuidade a este esforço de investimento nos próximos anos, seja ao nível das estratégias de mercado, da transformação dos processos de negócio e na formação de novas competências de gestores e trabalhadores. A requalificação deve ser uma prioridade para todos os sectores de actividade. Ao nível do financiamento, o Programa COMPETE tem sido incontornável no apoio ao esforço de inovação empresarial. No novo ciclo que se avizinha, será preciso ter maior agilidade, eficiência e, acima de tudo, desburocratizar, criando maior acessibilidade às empresas. É preciso maior envolvimento do sector financeiro privado no apoio às actividades de inovação e em particular às PME inovadoras e com capacidade de crescimento.
O trabalho que a COTEC realizou com o Banco Europeu de Investimento aponta um conjunto de medidas para ultrapassar as lacunas de financiamento à inovação, que incluem maior protagonismo do sistema de garantias do Estado, entre outras medidas.
Os empresários portugueses já perceberam a urgência das transformações da Indústria 4.0? De que forma é que isso se está a materializar? E os trabalhadores, perceberam a realidade que se afigura e a necessidade de se adaptarem?
Esta nova era tecnológica 4.0 suscita, por um lado, o interesse dos empresários; por outro, não é ainda a prioridade principal da sua acção. Em alguns casos ainda existe um sentimento de que o risco é elevado ou o retorno é incerto ou a muito longo prazo. Temos que alargar a compreensão das possibilidades e das ameaças de nada fazer, assim como o sentido de urgência.
Pelo seu lado, muitos trabalhadores não escondem a sua preocupação com o futuro, já que têm a percepção de que as competências que hoje possuem poderão ser insuficientes para as exigências de novas formas de trabalho onde a automação e a colaboração com máquinas mais inteligentes serão a regra. A questão central é como criar vantagens da combinação do know-how e experiência profissional com as possibilidades da automação.
Que diagnóstico faz do grau de digitalização e prontidão do setor empresarial público em particular para a nova revolução? Está suficientemente preparado?
Ao longo dos últimos anos, o Estado Português percorreu um notável caminho de reorganização e simplificação dos processos de negócio e melhoria sistemática dos serviços públicos, o que constituiu uma revolução cultural e uma profunda “Reforma do Estado” que atravessou múltiplos ciclos políticos. É incontestável que na era do SIMPLEX, os serviços públicos estão mais eficientes, convenientes e confiáveis, ao melhor nível do que se faz na Europa e no Mundo. Apesar de alguns percalços normais para um processo de mudança desta magnitude, a experiência dos cidadãos e empresas com a generalidade dos serviços públicos tem sido em geral satisfatória. A Administração Pública, no seu conjunto, tem melhorado a imagem de modernidade, manifestando uma cultura mais aberta e mais favorável à inovação e à experimentação e com resultados comprováveis e mensuráveis. No entanto, não podemos descansar à sombra dos sucessos. Os decisores políticos têm que manter o sentido de urgência de redução dos custos de contexto e assim garantir a competitividade para todas as empresas a operar em território nacional. Deverá continuar a ser dada prioridade política máxima ao investimento na modernização administrativa, dotando os programas com recursos adequados. Na esfera da inovação, Portugal tem larga margem de progressão nas plataformas de inovação, se apostar em políticas de interoperabilidade e harmonização de normas.
Que oportunidades é que a Indústria 4.0 pode criar para desenvolver o interior do País e para diminuir as assimetrias regionais?
As tecnologias de conectividade e as plataformas digitais reduzem a vantagem da localização física da empresa e aumentam a proximidade com o Cliente. Uma das grandes vantagens da digitalização e da conectividade, é que estas são muito mais inclusivas e não se resumem aos grandes centros e à faixa litoral do país.
Na perspectiva das plataformas comerciais digitais e da logística inteligente, qualquer localização é potencialmente competitiva. A condição distintiva para reduzir assimetrias e lacunas de competitividade é o acesso ao capital humano e talento, este sim, o verdadeiro recurso distintivo da 4.ª Revolução Industrial.
Que características inerentes à estrutura empresarial portuguesa podem servir-nos de alavanca e distinguir-nos positivamente nesta nova vaga de inovação?
A experiência dos empresários portugueses nas diversas crises ao longo das últimas décadas demonstrou que persistência, determinação, engenho, capacidade de adaptação e flexibilidade são características dominantes, criam resiliência, e por isso podem constituir vantagens distintivas nesta nova era de incerteza e rápida mudança.
Como é que se garante, perante a clássica ameaça da “máquina”, que as pessoas continuam a ter um papel preponderante na atividade produtiva e a preservação do máximo de postos de trabalho?
A história mostra-nos que as vagas tecnológicas melhoraram sistematicamente a condição e o valor do trabalho humano. No entanto, a transição não é isenta de convulsões sociais e de riscos de exclusão. Para tirar o máximo partido das possibilidades tecnológicas, os empresários, trabalhadores e actores políticos terão que manter um diálogo responsável para garantir que as competências necessárias e as trajectórias de evolução profissional estarão acessíveis a todos. Há um sentido de urgência para intervenção das instituições do Estado, a qual terá que acontecer com acerto e mais rapidamente do que no passado. A mudança está a ocorrer mais depressa e com muito maior abrangência e profundidade, tornando o processo de adaptação das pessoas mais complexo e com maiores riscos. Neste contexto, é preciso garantir que a primazia do indivíduo e a dignidade do trabalho humano se mantêm valores sociais inquestionáveis. No curto prazo, será preciso estimular o desenvolvimento de capacidades humanas que serão cada vez mais importantes como as artes, o engenho, inventividade, imaginação e entreajuda. A médio e longo prazo, o maior desafio será reinventar como aprendemos, a derradeira e mais persistente herança das revoluções industriais anteriores.
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