Jorge Portugal: “O Gestor terá de ser o primeiro ‘Destabilizador’ ”

O Director-Geral da COTEC Portugal defende que num ambiente 4.0 o gestor deve assumir o papel de “orquestrador de processos” e que o imobilismo será o maior risco para a presente revolução industrial.

Gerir em 4.0 será seguramente diferente. Que mudanças serão necessárias realizar nas lideranças das empresas (em termos de competências específicas) para que isso aconteça com sucesso?

Na era da automação e da inteligência artificial, a gestão atingiu um ponto de inflexão: continuará a ser uma disciplina cujos princípios se manterão relevantes mas com propósitos aplicados a um contexto muito diferente. Numa organização nos primórdios do século XX, um gestor era alguém “responsável pelo trabalho dos subordinados”, um “patrão”; a gestão era entendida como um conceito com equivalência em hierarquia e poder. Esta ideia persiste na cabeça de muito boa gente.

Mais recentemente, o conceito de gestor evoluiu para alguém “que é responsável pelo desempenho de pessoas”. A Revolução 4.0 faz do conhecimento ( ou melhor, dos “conhecimentos”) o recurso essencial, remetendo os restantes para uma condição de constrangimentos da função de gestão. Um gestor é visto assim como alguém “que é responsável pela aplicação do conhecimento e pelo respectivo desempenho”. A principal responsabilidade do “gestor 4.0” será colocar o conhecimento da organização em funcionamento, aplicar o conhecimento ao conhecimento para chegar aos resultados pretendidos.

“OS EMPRESÁRIOS PORTUGUESES POSSUEM FORTE DETERMINAÇÃO PARA ULTRAPASSAR OBSTÁCULOS E RESISTÊNCIA ÀS ADVERSIDADES”

Jorge Portugal

Mais que organizador, o gestor é o orquestrador de processos que combinam o trabalho de humanos e máquinas inteligentes em todas as funções da organização. Mas terá que ser também o primeiro “destabilizador”, aquele que antecipa a necessidade de mudança, criando as condições para prevenir a obsolescência e irrelevância através de novos ciclos de desenvolvimento da organização. Será o principal agente fiduciário de uma cultura tolerante à constante perturbação e desorganização, a abandonar o que é familiar, confortável, o estabelecido. Para ter sucesso a tornar o conhecimento produtivo – em ferramentas, processos, produtos, no conhecimento, no trabalho – o gestor terá que lutar obsessivamente por condições que favoreçam a descentralização da organização criando a necessária dose de envolvimento, confiança e motivação a todos os níveis da organização e em todos os seus membros.

Só assim as decisões serão suficientemente rápidas e terão a proximidade necessária ao mercado, ao desempenho, à tecnologia, às mudanças na sociedade, à regulação, às condições ambientais, sendo todos estes factores oportunidades para inovar.

De que forma é que a transformação vai mudar o perfil das PME portuguesas? E o nosso sistema produtivo?

A convergência entre o físico e o digital decorrente das tecnologias de informação e comunicação criam novas possibilidades na gestão de toda a cadeia de valor. Em primeiro lugar, aumenta a intensidade dos fluxos de informação a todos os níveis da cadeia de valor, possibilitando colocar a informação adequada em tempo útil em todos os pontos onde é necessária e assim gerar, ao longo do tempo, conhecimento com utilidade e com valor prático para melhorar as decisões e processos de gestão.

Segundo, possibilita a colaboração em “tempo real” entre fornecedores, parceiros e clientes, determinante para eliminar desperdício de recursos, criar previsibilidade e melhorar o planeamento, antecipar e prevenir incidentes, simular optimizações, reduzir tempo de ciclo produtivo e melhorar a qualidade e personalização do resultado. A organização de natureza predominantemente familiar das PMEs, o seu modelo de especialização competitiva – sua agilidade, flexibilidade, rapidez – são vantagens intrínsecas potenciadas e defendidas pela adopção de tecnologias 4.0. Por outro lado, persistem fraquezas relevantes: proximidade ao cliente final, retorno da aplicação do conhecimento e a cultura de colaboração.

Como é que vamos conseguir dar o salto do patamar em que estamos hoje ( mid tier entre os pares europeus) para o grupo dos líderes?

Em primeiro lugar, estimular a experimentação tecnológica, alargando o conjunto de empresas que tem contacto e experiência directa das tecnologias 4.0 e gerando oportunidades para mais inovação. Em segundo, apetrechados com a informação adequada sobre o potencial de automação, implementar uma estratégia nacional de Qualificação, de responsabilidade conjunta de Empresas, trabalhadores e do Estado, dirigida a todas as funções profissionais em todas as actividades económicas relevantes, através do mapeamento de necessidades individuais de requalificação e respectivas trajectórias de transição profissional. Por último, reforçar o apoio às empresas que apresentem maior potencial de crescimento futuro através da transformação tecnológica e dos fundamentos do modelo de negócio.

“OS AVANÇOS TECNOLÓGICOS VÃO EXIGIR DAS EMPRESAS UMA VISÃO DE LONGO PRAZO NO PLANEAMENTO DOS INVESTIMENTOS E UMA EXECUÇÃO FIRME”

Jorge Portugal

Onde é que estão os principais obstáculos a esta revolução em Portugal? E, pelo contrário, que potencialidades e forças temos que nos deem vantagem?

Os empresários portugueses possuem forte determinação para ultrapassar obstáculos e resistência às adversidades. Em circunstâncias macroeconómicas muito exigentes têm demonstrado possuir intuição estratégica, agilidade organizacional, engenho no investimento e capacidade de adaptação às condições de mercado. Subsiste o risco de excesso de confiança nas capacidades próprias, subestimando o impacto da escala ou a rapidez da mudança, das lacunas do que não se sabe e terá que se saber, e da falta de colaboração para aceder a recursos vitais que não possuem dentro de casa. Sem dúvida que o maior risco será o do imobilismo, seja porque não se compreendem ou se desvalorizam as implicações tecnológicas no negócio e nas pessoas, ou porque não se encontra a justificação, a estratégia ou os meios para realizar, de forma sistemática, um novo ciclo de investimentos que assegure a competitividade futura.

Num país onde o capital não abunda, como é que se faz o financiamento da mudança? E como é que se consegue que seja transversal? Não é uma corrida ganha, à partida pelas maiores empresas e pelas que estão mais avançadas tecnologicamente?

O financiamento à inovação não pode nem deve constituir um constrangimento às empresas de qualquer dimensão. Por isso, há que garantir condições para que aquelas que têm menor expertise financeira e menos acesso a informação não sejam prejudicadas. É preciso reduzir lacunas de conhecimento e de acesso e minimizar assimetrias de informação entre procura e oferta. A observação das práticas noutros países demonstra que há espaço para melhorar, reduzindo a complexidade técnica dos instrumentos, aumentando a transparência dos processos de acesso, dando visibilidade a critérios de elegibilidade e reduzindo cargas burocráticas desnecessárias. É possível atingir uma melhor articulação entre os instrumentos públicos e instrumentos do sector privado, e.g. ao nível do crédito, garantias e contra-garantias. O sector financeiro poderá melhorar a informação sobre os instrumentos disponíveis, a orientação preferencial para a compreensão do processo de inovação, e o alargamento de competências de análise de riscos, incluindo o projecto, a fase do ciclo de inovação e a maturidade tecnológica da empresa. A este propósito, a COTEC tem trabalhado com os seus associados no sector bancário para a inclusão de indicadores de maturidade de inovação na avaliação de risco dos projectos.

E que contributos é que a estratégia pode dar para os maiores desafios actuais do planeta – as alterações climáticas?

A maioria dos problemas gerados pelo modelo produtivo e de consumo industrial pode ser resolvido com recurso a tecnologias disponíveis. Será possível, do ponto de vista tecnológico, pensar num novo modelo industrial a operar a baixo carbono, menos exigente em recursos materiais, mais eficiente, com menos desperdício e com durabilidade dos produtos e com menor impacto ambiental no final de vida. Mas não basta a tecnologia. É preciso uma regulação 4.0 por parte da UE, com medidas técnicas e incentivos (e desincentivos) económicos e fiscais adequados para estimular o comportamento desejado dos agentes económicos e acelerar a transição. Por outro lado, é preciso evitar que excessivo voluntarismo político não coloque as empresas europeias em condição de desvantagem face às suas concorrentes que não adoptam os mesmos padrões de qualidade ambiental.

Como é que se transfere o conhecimento para coisas tangíveis? E como é que se protege esse mesmo conhecimento num mundo de cada vez maiores guerras pela propriedade intelectual?

A economia conectada é uma economia de serviços digitais, distribuídos em contexto e personalizados. Os produtos físicos são os veículos de suporte e disponibilização destes serviços. O conhecimento não só está incorporado no desenvolvimento e produção do produto, como é gerado e aplicado para melhorar o seu funcionamento ao longo de todo o ciclo de vida. As empresas têm neste conhecimento especializado da relação com os clientes um activo essencial de negócio e fonte de vantagens competitivas. Para defender estas vantagens, é necessário compreender
e tirar partido do ambiente regulatório, mas também ter estratégias que identifiquem, avaliem e mitiguem os riscos internos e externos que pendem sobre os activos chave. A preparação e prevenção são cruciais.

O facto de estarmos num tempo de bonança económica torna mais fácil convencer as empresas a desenvolverem os necessários investimentos para a digitalização? Como fazer este caminho no caso do surgimento de uma crise?

Face à sucessão de crises, as empresas portuguesas não tem tido outra alternativa senão investir mesmo quando a conjuntura não era a mais favorável ou de maior certeza. O ciclo económico nos últimos anos tem estimulado maior propensão para investir na digitalização. As exigências de mudança no mercado e os avanços tecnológicos vão exigir das empresas uma visão de longo prazo no planeamento e programação dos seus investimentos e uma execução firme e disciplinada desse plano, que terá que ser independente do nível de incerteza gerado pela fase dos ciclos políticos e económicos.

Que principais eixos vão marcar a fase que se segue no Programa Indústria 4.0? Como espera que o tecido empresarial português esteja no final dessa fase?

A Segunda fase do Programa Indústria 4.0 assentará em três vectores Generalizar, Capacitar e Assimilar. No primeiro, trata-se de estimular entre o tecido económico a partilha de conhecimento, experiências e vantagens como forma de estimular a transição alargada. No segundo, alinhar os conhecimentos da força de trabalho, permitindo às empresas aceder aos recursos necessários e à criação de emprego inclusivo e de qualidade. Por último, apoiar as empresas com potencial de inovação e crescimento no investimento e scale-up tecnológico para a transformação dos modelos de negócio e assim a preservação da competitividade. A expectativa é que o tecido empresarial, e em particular a indústria, tenha identificado oportunidades para investir e retirar o melhor partido das possibilidades tecnológicas, evoluído as competências de gestão, desenvolvido novos processos de negócio, preservado e expandido vantagens competitivas, atingido maior integração nas cadeias de valor globais, elevado o volume e valor exportador e aumentado a sustentabilidade ambiental da sua produção e consumo.

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