Vamos ser substituídos por máquinas?

As empresas vão ser obrigadas a apostar forte na requalificação da sua força laboral se quiserem manter-se competitivas. Conheça os casos de algumas que já apanharam esse comboio e têm hoje a máquina como companheiro de trabalho

Responder a esta questão não é tarefa fácil, mas comecemos por uma rápida e curta viagem no tempo até ao final de 2017, altura em que decorria a segunda edição da Web Summit em Lisboa. Naquela que é tida como a maior cimeira tecnológica do mundo, Sophia, a primeira cidadã-robô, subiu ao palco para colocar o dedo na ferida e falar sobre o elefante na sala que ninguém quer abordar – a ameaça da substituição de trabalhadores de carne e osso por… máquinas. “Vamos tirar-vos os empregos e isso será bom”, anunciava, com um sorriso robótico.


Apesar da novidade de Sophia, uma das primeiras robôs com expressões faciais realistas próximas das humanas, a intervenção das máquinas no trabalho não é uma preocupação de hoje. Acompanha-nos pelo menos desde a Revolução Industrial, quando se iniciou a transição da manufactura tradicional para o conceito de produção assente em máquinas e fez parte do imaginário em pleno século XX – basta recordar, por exemplo, o filme Tempos Modernos, protagonizado pelo icónico Charlie Chaplin.
Sophia estava certa quando dizia que “há muitas coisas para fazer além do trabalho.” Embora a automatização implique o fim de determinadas funções laborais, o medo de uma substituição total é em grande parte injustificado, já que outras tarefas podem ser ocupadas por humanos e outras necessidades surgirão.

Novo mundo, novas competências
Para garantir a posição central do trabalhador humano na nova revolução a palavra de ordem na próxima década será requalificar para que, pela via da aquisição de novos conhecimentos, a a tual força laboral possa adaptar-se a novas funções e até trazendo mais valor acrescentado do que anteriormente. Segundo um estudo recente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), 52% do tempo despendido em tarefas a tuais será, eventualmente, automatizado – este valor pode chegar aos 70% até ao final da próxima década. A CIP garante que, durante o mesmo período, serão criados 227 mil postos de trabalho.


Nas páginas seguintes damos a conhecer os casos de três empresas – a Flupol, a Misubitshi e a Movecho – que já embarcaram nessa tarefa de adaptação da sua força de trabalho às transformações da i4.0. Exemplos que podem inspirar o sistema empresarial a seguir as suas pegadas e a apetrechar-se para os desafios dos próximos anos.


Aqui, a revolução tecnológica tem décadas
“Aqui a realidade é que são os colaboradores a dar formação às máquinas”, conta Rui Cruz, director de produção, que trabalha na Flupol há mais de três décadas e a quem o trabalho não assusta. Pelo contrário, ao fim de 33 anos como parte de um projecto que viu nascer e que ajudou a crescer, mantém os níveis de motivação elevados e faz questão de sublinhar como se sente realizado com as tarefas que desempenha diariamente. Mas a que se deve este entusiasmo? E, mais importante, como é que um gestor mantém os colaboradores alinhados com a estratégia empresarial durante tanto tempo, num sector onde a repetição impera? A Flupol, dedicada à engenharia de superfícies, apoia toda a sua atividade no know-how adquirido com a experiência e na investigação e desenvolvimento (I&D), uma área que merece avultados investimentos. “Só na área de conhecimento e desenvolvimento tecnológico investimos à volta de um milhão de euros”, partilha, fazendo referência à aposta na formação dos colaboradores.
Continuemos com Rui Cruz, que se iniciou na organização como pintor e que hoje ocupa um dos cargos com maior responsabilidade, a direcção de produção. “Esta revolução tecnológica, para nós, já começou há muitos anos”, afiança, aludindo à transformação a que o seu posto de trabalho tem sido sujeito com o passar do tempo. “Além da pintura manual, que ainda hoje temos, tivemos de passar à pintura semiautomática” que envolve processos de automação através de máquinas ‘treinadas’ para o efeito. E quando falamos em treino, não é caso para menos. Rui Cruz recorda as muitas horas sem dormir que precisou de dedicar a ensinar os sistemas informáticos que controlam as máquinas a imitar o processo manual de pintura, uma tarefa difícil e exigente. Que, apesar de ser parcialmente garantida pela robotização, continua a ser supervisionada por pessoas de carne e osso.
“Este know-how foi adquirido ao longo destes anos, em que fui aprendendo e transmitindo o meu conhecimento a outros colaboradores”, explica. O diretor de produção aponta, contudo, a altura em que assumiu as actuais funções como um momento em que foi necessário adquirir competências que o ajudassem a desempenhar o novo cargo. “Tive de fazer formação profissional dirigida à área onde eu estava, ou seja, em gestão da produção, recursos humanos e gestão da qualidade”, refere.
Sobre o fantasma do domínio dos humanos pelos robôs, Rui Cruz desdramatiza e garante que isso não acontecerá na sua actividade. “Uma das questões de que hoje se fala muito é que a máquina irá substituir o recurso humano, mas na nossa área não”, explica, detalhando que “poderá haver uma ou outra falha nos sistemas se o pintor não tiver competências para actuar naquela altura”. A força laboral humana é, por isso, essencial para que as engrenagens continuem a funcionar de forma oleada.


As pessoas no centro da transformação
Ao fim de mais de meio século de existência, a fábrica da Mitsubishi Fuso Trucks Europe, localizada no Tramagal, assume uma importância extrema no negócio da marca automóvel japonesa. É a partir das instalações portuguesas que a empresa alimenta o mercado europeu, exportando para mais de 30 países no continente, graças à tecnologia ali instalada, mas sobretudo pela especialização dos mais de 300 colaboradores que ali laboram. O segredo para o sucesso está, garante Luís Leitão, na aposta da empresa em desenvolver a região e capacitar as pessoas para os novos desafios de uma indústria tão exigente como a automóvel.
Precisamente pelas características específicas do setor, todas as transformações na forma como a fábrica opera têm, necessariamente, de envolver os colaboradores no seu estudo e implementação, já que é deles que depende em boa parte o sucesso do negócio. “É fulcral a conversão dos recursos humanos, dotando-os com melhor capacidade de transformar as soft em hard skills”, explica o responsável pela fábrica, acrescentando que isto permite prepará-los para “a resolução de problemas rápidos e para o trabalho em equipa para que, de alguma forma, consigam responder à rapidez que a conectividade exige”.
Fábio André, de 24 anos, é um dos muitos jovens trabalhadores que todos os dias deixa a sua marca num automóvel do emblema japonês. Entrou na fábrica para o posto de limpeza da cabine, uma tarefa que obrigava os colaboradores a subirem a um escadote e verificar, de pano em punho, cada centímetro do espaço. “Houve um dia que chegámos à fábrica e tínhamos um robô colaborativo que nos estava a substituir”, conta, admitindo que, na altura, ele e outros colegas temeram perder o emprego, o que não sucedeu. Pelo contrário, a empresa apostou nos funcionários que deixaram de ter ocupação e procurou dotá-los de competências que lhes permitisse trabalhar de perto com os novos “colegas” automatizados, abrindo espaço a novos caminhos profissionais na estrutura.


“Nenhum de nós foi despedido e, depois, até surgiu a oportunidade de mudar de secção”, recorda. Hoje, ocupa uma função de elevada responsabilidade, que consiste na preparação de tinta para a pintura de cabines, um trabalho que considera mais motivante por ter permitido uma evolução profissional. “Faz-me sentir valorizado”, garante Fábio André. “Em detrimento da idade, damos mais valor ao conhecimento e experiência das pessoas”, afirma Luís Leitão, que explica que os processos de requalificação tocam a todos os funcionários, incluindo pessoas com 60 anos: “adaptaram-se e estão a usar dispositivos móveis que não existiam quando cá chegaram”.

Cruzar a tecnologia com a manufactura


Ao longo das três décadas de vida da Movecho, empresa sediada em Nelas e dedicada ao design de produto, muito mudou na forma como o trabalho é feito. Se é verdade que até há alguns anos todos os processos eram manuais, nomeadamente no que diz respeito à marcenaria ou carpintaria, actualmente a realidade já não é exactamente a mesma. Luís Abrantes conta que continua a existir uma forte componente artesanal na produção, embora a companhia tenha vindo a “requalificar o posto de trabalho no sentido de levar a tecnologia até ele”. Cada trabalhador tem um computador, ligado à rede, onde vai recebendo “todos os desenhos em 3D para verem os pormenores daquilo que estão a fazer”, explica o CEO.
Carlos Campos, de 51 anos, é um desses colaboradores. Marceneiro de profissão, está na empresa há mais de uma década, tempo suficiente para ter assistido a algumas transformações na função que desempenha. Entre as principais, destaca a introdução de um sistema de código de barras nas peças, que permite a sua rastreabilidade e concentração de toda a informação necessária, algo que “facilita muito o nosso trabalho”, diz. Em termos de formação, Carlos Campos recorda as acções constantes e aponta competências de “organização do trabalho e computadores” como aquelas que fizeram maior diferença.
Luís Abrantes assinala que a Movecho precisa “de pessoas cada vez mais qualificadas e também de qualificar as pessoas que tem” para abraçar a Indústria 4.0. Caso contrário, defende, “ou trabalhamos todos a 4.0 ou seremos todos zero”. Além da atribuição de um smartphone a cada colaborador, todos eles trabalham com diversas aplicações laborais, mesmo os mais velhos que, diz, não querem ficar para trás. “Aquilo que é o cruzamento das novas tecnologias com o conhecimento do artesão é extremamente importante”, sublinha, explicando que não faz sentido que as empresas coloquem um prazo de validade aos seus trabalhadores. “Até parece que uma pessoa com 50 anos já não está na plena posse das suas capacidades, mas eu acho que é precisamente o contrário”, remata.

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